Veremos sim um país: Contra os cortes dos investimentos nas universidades públicas

Não Verás País Nenhum: entre profecia e aviso de incêndio, em 1981 o escritor brasileiro Ignácio de Loyola Brandão nos advertia sobre o possível e provável futuro do país a partir das palavras que escolheu para intitular sua mais recente obra publicada. Seguido da advertência inicial, o não-mais-Brasil de Loyola projetado nas páginas do romance não deixou de existir somente por conta de um acidente com um reator nuclear; o avanço do capitalismo e da sua selvageria intrínseca resultou na desintegração do território e da soberania nacional - entregues de bandeja às grandes corporações do capital internacional - e na devastação total da natureza. Sem água nem alimentos, o precariado trabalhava para receber, por dia, um prato de comida factícia - produzida pela indústria química governamental - e, para beber, um copo de urina reciclada.

Não só disso o não-mais-país se desfez. Padecendo sob um regime político autoritário, os Militecnos ocupavam os postos do alto escalão do Esquema. Já a milícia dos Civiltares é que fazia a "segurança" de rua: atirava primeiro e, quando perguntava, perguntava depois do tiro. Além balas de armas de fogo, balas catalépticas também eram disparadas ao menor sinal de desordem. Neste caso, os atingidos não morriam de pronto, mas ficam desacordados por um tempo, para serem levados ao destino mais temível deste não-mais-Brasil: o Isolamento.

Esse não-país é apresentado por Souza, um ex-professor universitário de História. Ex pois havia sido mandado para a aposentadoria compulsória, justificada pelo excesso de perguntas intragáveis para o Esquema que surgiam nas suas aulas. Exatamente no período em que os cientistas foram cassados: a perseguição aos cientistas e o esvaziamento das universidades são justamente os pontos de abertura, para Souza, destes novos velhos tempos. Nas universidades só restaram os cursos que poderiam fornecer soluções que melhorariam o desempenho e a eficiência do capital. Suas cadeiras e foram ocupadas pelos Militecnos, que, além de militares, podiam pagar as altas faturas pelo ensino superior. Nascidos pós-explosão do reator, foi provado pelos cientistas (e eis aqui mais um motivo para sua perseguição) que os Militecnos sofreram uma deformação humana: incapazes de emoção, incapazes de memória, extremamente calculistas.

                                            


O projeto de crise das universidades públicas brasileiras tem sido tema frequente dos debates atuais.
Segundo o "Tesourômetro do conhecimento" apresentado pela iniciativa Conhecimento Sem Cortes, desde 2015 (abarcando aqui ainda o governo legítimo de Dilma Rousseff) já foram cortados quase R$ 12.000.000.000 de investimento na produção de conhecimento, o que representa cerca de 50% de tesourada nos orçamentos de universidades, pós-graduações e no Ministério de Ciência e Tecnologia. Uma matéria recente da CBN evidenciou que a verba disponível para manutenção das universidades federais só cobrem o custeio até setembro, e o orçamento previsto para o próximo ano é o menor dos últimos 10 anos. Tendo em vista a PEC do Fim do Mundo, que congelou os investimentos públicos por 20 anos, o cenário não é de melhoria: é o projeto de sucateamento de vento em popa.

Patrimônio do estado do Rio de Janeiro, a UERJ tem estado na ponta da lança do governo PMDB do estado do Rio no que tange o desmonte. São 30 mil estudantes que estão sendo impedidos de estudar pelo governo do PMDB. De acordo com Géssica Guimarães, professora do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em um post na rede social Facebook, "a crise não é da UERJ. A crise é o fim da política de conciliação. Precisamos entender que o recuo conservador é o escancaramento da luta de classes (sem medo de usar a categoria marxista!) no Brasil."

O corte do financiamento público vem como reação a uma crescente popularização do ambiente acadêmico, capaz de atravessar gerações: atinge tanto o corpo discente atual, como a renovação do corpo docente, que outrora foram alunos e alunas em tempos de democratização do espaço. O governo ilegítimo de Michel Temer, que traz consigo no mesmo balaio toda a escória da elite brasileira, tem conduzido o país a um passado que, em certa medida, acreditávamos ser superado. A universalização do ensino público e superior, antes em pauta, representa não só uma conquista civilizacional, como uma potência emancipatória dos laços de dependência na ordem do capitalismo mundial. Ora, não é na direção contrária que essa escória já citada conduz o Brasil em suas decisões autoritárias e palacianas?

A mais recente notícia que compõe o cenário do colapso do ensino superior público foi a divulgação do corte final das bolsas do Programa de Iniciação Científica, que atende alunos e alunas da graduação, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o CNPq, uma das principais agências nacionais de fomento à pesquisa. Uma nota do Comitê do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da Universidade Federal do Rio de Janeiro denunciou, em 02 de agosto deste ano, que as bolsas do Programa seriam suspensas a partir de setembro. Só na UFRJ, de onde partiu a notícia, são 3,6 mil bolsas PIBIC a serem cortadas, o que significa que 3,6 mil estudantes de graduação que hoje pesquisam para o Brasil serão afetados, e que significa também que o volume qualitativo de produção de conhecimento relativo a 3,6 mil estudantes e seus orientadores e orientadoras será estancado. Como (não) resposta, o CNPq publicou uma nota oficial na qual, em tantas linhas, garantia nenhuma foi capaz de fornecer: estão negociando a liberação de verba contingenciada para o programa junto a Gilberto Kassab, cuja biografia revela ser economista, engenheiro civil, empresário e até corretor de imóveis, e que hoje comanda a pasta da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Até lá, a única certeza é a incerteza.

Ignácio de Loyola Brandão nos conta em entrevista que, em vez de Não Verás País Nenhum, o título de seu romance seria O Corte Final, em alusão à - irônica - cerimônia oficial, promovida pelo Esquema, de corte da última árvore que restava no ainda-Brasil. Se ainda podemos contar com árvores na nossa paisagem, a imagem do corte final tem para nós, hoje, um outro significado. O memorial de Souza, que toma forma nas páginas de Não Verás.... é acompanhado pela pergunta "como chegamos até aqui?". De certo modo, quis Loyola que essa pergunta, a nós, vivendo no futuro distópico por ele projetado, não nos coubesse? 

Assistiremos ao desmonte do Brasil? Aceitaremos viver em um não-mais-país? Recusaremos a pergunta perplexa que nos resta de "como chegamos até aqui?", tendo em vista, inclusive, que esse "aqui" se move para trás e para o fundo ao mesmo tempo? A resposta é não. Veremos sim um país. Não aceitaremos as migalhas do pão que ontem foi o orçamento do conhecimento. Implícita na narrativa de Souza está um convite à ação. Se o desmanche do país e se os corte finais dos investimentos no ensino público e gratuito não são cenas que assistimos passivamente como se agradassem aos nossos olhos, não são retratos vivos que compõem a arquitetura do Brasil que construímos, a responsabilidade pela intervenção em um tempo e mundo que são os nossos se torna um imperativo. Souza sai do seu estado de letargia e consegue promover uma ação a partir de um furo que aparece em sua mão. O que fazemos todos e todas nós com as nossas mãos também furadas?

Ana Carolina Monay
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História 
da Universidade Federal de Ouro Preto
Bolsista CAPES
Pesquisadora da COMUM-UERJ




Em tempo, segue link para site do Conhecimento Sem Cortes, onde é possível ter acesso aos dados do desmonte das universidades públicas, à agenda de mobilização da campanha que será levada à Brasília e ao abaixo-assinado online contra os cortes: http://www.conhecimentosemcortes.org.br/.



Comentários

  1. Aterrador o plano em consecução do desmonte do Estado. No Rio de Janeiro, a UERJ é o experimento mais bem acabado desse engodo requentado de neoliberalismo anacrônico que assanha as máfias parasitárias empresariais. Mais uma vez, ante a emergência do povo, a elite se lança numa guerra voraz contra a classe trabalhadora. Com o fim do pacto conservador lulista e suas reformas tímidas (e necessárias) se abrirá (há de abrir!!!) um horizonte de lutas radicais e emancipatórias. A canalhada prepara os seus coveiros de amanhã, não há dúvida! Estejamos alertas para virada histórica. Ho Chi Minh, no cárcere rabiscava, em poema: "Aqui teu corpo estar preso na cela.Teu espírito, não ele está livre. Se queres continuar tua missão, deves manter elevado o teu moral". Cuidemos do espírito, não endoidecemos neste momento de desespero que a vida há de passar e povo há de vencer!!! Parabéns pelo texto, Ana Carolina. Parabéns pela lucidez!!!

    Luiz.

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